APURINÃ

Introdução

Dispersos em locais próximos às margens do Purus, os Apurinã compartilham um rico complexo cosmológico e ritual. Sua história é fortemente marcada pela violência dos dois ciclos da borracha na região amazônica. Hoje lutam pelos direitos a algumas de suas terras que ainda não foram reconhecidas e que são recorrentemente invadidas por madeireiros.

Nome e língua

Alguns afirmam que Apurinã – e, de forma mais antiga, Ipuriná – é uma palavra da língua Jamamadi. A auto-denominação do grupo é popũkare (o “u” lido entre o i e o u do português). Alguns textos antigos referem-se à palavra kãkite como auto-denominação. Kãkite significa “gente”, mas, segundo alguns Apurinã, kãkite é usado para gente no sentido de espécie humana (“eu vi gente”, como “eu vi macaco”, “eu vi onça”), mas não no sentido de povo.

A língua Apurinã é uma da família Maipure-Aruak, do ramo Purus (cf. Facundes, 1994). A língua mais próxima seria a dos Manchineri, ou Piro, que habitam a bacia do alto Purus em território brasileiro e, no Peru, principalmente a bacia do baixo Urubamba. Alguns Apurinã afirmam que eles também compreendem um pouco da língua Kaxarari em razão de sua saída conjunta da Terra Sagrada, segundo versa sua mitologia.

Localização e população

Os Apurinã vivem em diversas Terras Indígenas, sendo duas com os Paumari do Lago Paricá e Paumari do Lago Marahã, e uma com os índios Torá, na terra de mesmo nome.

O território habitado pelos Apurinã, no século XIX, era o médio rio Purus – do rio Sepatini ou do rio Paciá ao Laco. Mas os Apurinã são um povo tradicionalmente migrante e, hoje, seu território se estende ao baixo rio Purus, até Rondônia. Há áreas Apurinã nos municípios Boca do Acre, Pauini, Lábrea, Tapauá, Manacapuru, Beruri, Manaquiri, Manicoré (este último na TI Torá), todas no estado do Amazonas, além de índios Apurinã morando em várias cidades do país, e uma aldeia na Terra Indígena Roosevelt, dos índios Cinta-Larga, com quem alguns são casados.

Os primeiros pesquisadores, viajantes e missionários a percorrer o rio Purus, na segunda metade do século XIX, afirmavam que os Apurinã, ainda que morassem a alguma distância da beira do rio, vinham para as margens do Purus para pescar e apanhar tartarugas. Na época em que chegaram os não-índios, muitos Apurinã se refugiaram no alto de igarapés, e, outros, quando trabalharam em seringais, também moraram em locais insulados.

Os ambientes do rio Purus influenciam muito o modo de vida do Apurinã. É importante a diferença entre terra firme e “vargem”, ou, entre partes alagáveis e não-alagáveis. As moradias mais “centrais”, ou seja, mais para o alto de igarapés, são sempre moradias de terra firme. Aquelas situadas na beira do rio são, por vezes, de terra firme, por vezes de vargem, já que o rio nem sempre alaga dos dois lados.

Na região do município de Boca do Acre, há quatro comunidades Apurinã, sendo três próximas à BR-317: a comunidade do Km 124 e a comunidade do KM 137, ambas na Terra Indígena BR-317, a comunidade do Km 45 na TI Boca do Acre, e a comunidade Camicuã na TI de mesmo nome, localizada bem próxima do município.

Segundo Leôncio, cacique da comunidade do Km 124, as três comunidades, hoje localizadas na beira da estrada, originaram-se de três sobreviventes de um surto de sarampo, que dizimou a maloca existente na região. A sua mãe, Kamapã, foi uma das sobreviventes, e seu nome foi dado à atual aldeia do Km 124. Maen, outra sobrevivente, dá o nome à aldeia dos seus descendentes, na comunidade do km 137.

É difícil estimar o número de índios Apurinã, e mesmo tratar deles de maneira genérica, porque estão muito espalhados. Segundo a Fundação Nacional da Saúde, os Apurinã somavam, em novembro em 2003, 4.057 indivíduos. Em 1996, só na região de Pauini havia nas Terras reconhecidas 1.114 habitantes (Relatório de Saúde/UNI) e cerca de 280 pessoas em terras a reconhecer (TIs Garaperi/Santa Vitória/Lago da Vitória/Capira, Baixo Seruini, Baixo Tumiã, Sãkoã/Santa Vitória e Mamoriá).

Deve-se considerar, ainda, que muitos Apurinã moram fora das áreas reconhecidas, em comunidades ribeirinhas ou em cidades – Pauini, Lábrea, Tapauá, Rio Branco e Manaus são freqüentemente citadas –, e que muitos migraram para locais distantes como Rondônia e até Rio de Janeiro ou Minas Gerais.

Histórico do contato

Os Apurinã tiveram contato sistemático com não-índios no contexto da exploração da borracha. No século XVIII, o rio Purus começou a ser explorado por comerciantes itinerantes, na busca das chamadas “drogas do sertão”: cacau, copaíba, manteiga de tartaruga e borracha. Alguns destes itinerantes se estabeleceram e começou a haver, então, benfeitorias para exploração, ainda no baixo Purus. Nas décadas de 50 e 60 do século XIX houve várias expedições para reconhecer e mapear o rio: nesta época, segundo os relatos, alguns Apurinã já trabalhavam para os não-índios.

O rio Purus foi povoado por causa da borracha. A exploração começou na década de 1870 e, em 1880, o Purus já estava todo povoado de não-índios. A borracha decaiu na década de 1910, quando começou a produção asiática, com a qual a brasileira não conseguiu competir. Sem o mercado, os seringais foram abandonados pelos patrões. Os seringueiros e índios permaneceram, voltaram a produzir para a subsistência (isso, muitas vezes, era proibido nos seringais) e a vender outros produtos, como a castanha.

A borracha teve um novo boom com a Segunda Guerra Mundial. Os Aliados precisavam de borracha, e os seringais asiáticos estavam em poder do Eixo. Na primeira metade do século XX 50 mil nordestinos foram transportados para o Amazonas para trabalhar como seringueiros, denominados então “soldados da borracha”. Finda a guerra, findou também o mercado. Após este período, os seringais foram financiados pelo governo. A retirada dos subsídios levou a uma nova queda, em 1985.

Os Apurinã tiveram inserções diferentes nos seringais: grupos inteiros foram mortos, alguns vendiam seus produtos, outros trabalharam como seringueiros; alguns trabalharam desde o princípio, outros tiveram contato com não-índios somente na época dos “soldados da borracha”. As histórias Apurinã falam de massacres, torturas, da experiência de terem sido escravos, das relações pessoais, de compadrio, das batalhas e guerras pela terra. Após a queda da borracha, nenhum produto a substituiu com a mesma importância e nenhuma outra estrutura de produção se estabeleceu com igual força na região.

O SPI (Serviço de Proteção aos Índios) teve um posto no rio Seruini, afluente do Purus, entre os atuais municípios de Pauini e Lábrea. O posto Marienê foi fundado em 1913, após conflito em que morreram cerca de quarenta Apurinã e sete seringueiros, segundo os jornais da época. O auge do posto, empreendimento com metas produtivistas, foi na década de 1920 e começo de 30. Depois, o posto decaiu e foram inúmeras as acusações de corrupção. No início da década de 1940 o posto estava desativado. O local do posto é, hoje, a aldeia Marienê (TI Seruini-Marienê).

O posto Marienê reuniu muitos Apurinã em um só local. De acordo com a ideologia do SPI, sua missão era trazer os Apurinã para a “civilização”, fazendo deles “trabalhadores úteis” ao país. O Posto Marienê é hoje relembrado por muitos Apurinã como uma cidade em que tudo era organizado, segundo alguns contam. Também são relembrados fatos negativos: a corrupção de seu encarregado, que ficava com os mantimentos que deveriam ser levados ao posto, e as roupas que os mandavam colocar somente para as fotos.

Entre 1977 e 79, a Ajudância da Funai no Acre faz os primeiros levantamentos na região de Pauini. No final da década de 1970, começam a haver conflitos em torno da terra e a resistência, por parte dos índios, contra invasões e exploração. Na região de Pauini, no igarapé do Tacaquiri, os Apurinã, aí moradores, liderados por João Lopes Brasil – o Lopinho –, foram contra o projeto da prefeitura de passar uma estrada por dentro da área. Nos anos seguintes, os conflitos prosseguiram e a possibilidade da estrada é sempre uma sombra para os moradores da TI Peneri-Tacaquiri. Em 1995, um empate, liderado por Lopinho, impediu nova tentativa da prefeitura de abrir a estrada. Entre os não-indígenas da região, acusa-se velada ou abertamente os índios como responsáveis pelo “atraso” de Pauini.

A Madeireira Nacional (Manasa) foi outra fonte de conflito. Com área imensa, que abrangia parte da TI Tumiã, a foz do rio Seruini e a TI Guajahã, a presença e pressão dessa empresa levaram à aceleração do processo de demarcação da TI Guajahã.

Outra empresa com poder de pressão foi a Agro Pastoril Novo Horizonte ou Zugmann. Localizada dentro da TI Seruini-Marienê, a empresa esteve envolvida em conflitos que resultaram na morte de José Lopes Apurinã e em vários feridos, alguns com seqüelas permanentes. Essa empresa apresentou, posteriormente, contestação à demarcação, o que não impediu a homologação da terra, uma vez que a contestação foi julgada improcedente.

Os trabalhos de identificação foram iniciados numa época de organização política incipiente. Hoje, os Apurinã reivindicam áreas que não haviam ainda sido reconhecidas, áreas em que moram, que usam, margens de igarapés ou do rio Purus, e mesmo a cabeceira, como é o caso do Tumiã, que foi deixada de fora. Os campos de natureza, importantes porque neles teriam morado os Otsamaneru, povo que saiu com os Apurinã da terra sagrada, também foram incluídos só em parte no perímetro das áreas oficiais.

Organização social e política

Uma das primeiras coisas que um Apurinã, da região de Pauini, explica sobre seu povo é que há uma divisão em duas “nações”: Xoaporuneru e Metumanetu. O pertencimento a um destes grupos é determinado pela linhagem paterna. Para cada uma das “nações” há proibições naquilo que se pode e não se pode comer: os Xoaporuneru não podem consumir certos tipos de inambu (inambu relógio e inambu macucau), e aos Metumanetu é proibido comer porquinho do mato. A quebra das interdições alimentares provoca problemas de saúde, e pode mesmo levar à morte, a não ser que haja intervenção eficaz de um “pajé” (meẽtu).

O casamento correto é entre Xoaporuneru e Metumanetu, pois casar dentro da mesma “nação” é o mesmo que casar entre irmãos. Esse é o termo, aliás, que dois membros da mesma metade podem usar ao dirigir-se um ao outro (nutaru, irmão; nutaro, irmã), assim como Xoaporuneru e Metumanetu chamam-se, por vezes, nukero (cunhada) ou nemunaparu (cunhado). Os nomes das pessoas indicam a qual das “nações” ela pertence.

Entre os Apurinã do município de Pauini, há divisões por regiões, que podem levar o nome de um igarapé ou do grupo de parentesco dominante: assim o pessoal do Peneri é o pessoal do Pedro Carlos; o pessoal do Seruini pessoal do Jacinto; pessoal da Água Preta é o pessoal do Doutor. O que marca as denominações é sempre o pai. Na língua Apurinã, há também a divisão por povos: Kaikuruwakoru (povo do jacaré), Yõpuruwakoru (povo do japó), Wawakoru (povo do papagaio), dentre muitos outros.

Já na região de Boca do Acre, o cacique e pajé Leôncio daria outra definição, segundo a qual os Apurinã são divididos em quatro sub-grupos: Xoaporuneru, Metumanetu, Kowaruneru e Kaikuruwakoru.

Aquilo que os Apurinã chamam hoje de “comunidade” varia muito. Por vezes, define-se comunidade pela existência de um chefe (cacique, liderança), de um professor e de um agente de saúde. A sua distribuição espacial é bem diversificada: inclui desde casas dispostas num mesmo terreiro, uma “aldeia”, até um conjunto de “colocações” dispersas, podendo ser ainda a combinação desses dois padrões. As unidades de moradia Apurinã foram sempre pequenas, de acordo com as fontes históricas.

A casa hoje, barraca, paraka ou aiko, é feita no mesmo modelo dos seringueiros. Alta, sustenta-se sobre esteios, madeira enterrada no chão. Cada casa é, em geral, habitada por uma família.

No “tempo de antigamente”, havia casas grandes, malocas, aiko. Dentro destas, segundo os autores antigos, as famílias eram separadas por paredes de folhas de palmeira. Havia, segundo os Apurinã, uma porta para homens, outra para mulheres. As festas eram feitas dentro da casa. Há, em geral, um terreiro, e quando este não está limpo, sempre é um cuidado a que se faz referência. No terreiro limpo é bom “brincar Xingané”. O terreiro da casa é, muitas vezes, varrido, e, em dias de festa, retira-se os tocos para não machucar.

Um local de moradia pode ser de um casal, com seus filhos, filhas, genros e noras; além de pais idosos, irmãos dos pais, sogros, ou afins solteiros ou viúvos. As aldeias podem ser constituídas também por várias casas de irmãos/irmãs que permanecem juntos, ou até de filhos destes irmãos.

Aspectos contemporâneos

Há três organizações representativas do povo Apurinã: em Lábrea, a OPIMP (Organização dos Povos Indígenas do Médio Purus); em Pauini, a OCIAC (Organização das Comunidades Indígenas Apurinã e Jamamadi), e em Boca do Acre, foi recentemente criada também uma organização.

Uma das principais lutas dessas associações é a regulamentação de áreas tradicionais Apurinã, ainda hoje habitadas, que não tiveram estudos de reconhecimento oficial: as denominadas TI Baixo Seruini, Baixo Tumiã, Mamoriá, Santa Vitória/Sãkoã, Garaperi/Lago da Vitória/Vitória/Capira.

As margens da estrada BR-317, no trecho Rio Branco-Boca do Acre, é totalmente devassada por pastos de fazendas. Áreas de matas nativas somente persistem dentro do perímetro das TIs. As cabeceiras dos igarapés estão nas fazendas, o que os torna poluídos e desprovidos de peixe. As caças são escassas: há dificuldades sérias na obtenção de alimento. No presente, ainda há muitos conflitos, com invasões de todas as partes. Os fazendeiros agora estabelecidos avançam sobre as terras demarcadas. Há pressões para retirada de madeira, e retiradas efetivas, através de invasões. A iminência do asfaltamento da estrada que passa dentro da TI Peneri-Tacaquiri tem preocupado as comunidades, que temem o agravamento dos problemas já existentes.

Fonte de Informação



Juliana Schiel
Antropóloga. Doutora pela Unicamp
juschiel@terra.com.br